As aventuras de Pi: um garoto e um tigre, náufragos, confinados em um pequeno barco à deriva na imensidão do oceano Pacífico, procurando sobreviver nas condições mais inóspitas. O fato de que em 90% das cenas do filme se vê o mar, em todo seu potencial de beleza e violência, nas mais variadas cores e transparências, já seria razão mais que suficiente para amá-lo. Especialmente para quem, como eu, sempre morou na praia durante a infância e adolescência, mas há 20 anos transplantou-se para São Paulo, sem nunca ter conseguido superar o trauma dessa separação, do corte dessa relação umbilical com o oceano. O filme de Ang Lee e o livro em que se baseou, do autor canadense Yann Martel, são praticamente idênticos. Uma adaptação muito fiel e feliz.
Além do mar, o que mais me encantou em As Aventuras de Pi é que ele oferece vários níveis de interpretação, tem camadas e camadas de significados, e exalta a função primordial que a mitologia e a narrativa literária desempenham para o ser humano. O filme nos revela mais uma vez a necessidade da arte, da metáfora e da existência de narrativas imaginativas para nos estruturar e consolidar como seres humanos.

As Aventuras de Pi, de Ang Lee.
Preparando um workshop há algum tempo – para consultores e representantes de uma editora – me dei conta de que poderia usar As Aventuras de Pi como uma maneira interessante de ilustrar o conceito dos 4 Cs (veja lista abaixo) das chamadas habilidades do do século 21, cujo desenvolvimento se requer de todos os alunos, para que possam exercer eficazmente as funções mais básicas na complexa sociedade em que vivemos. As habilidades são:
C – Comunicação
C – Criatividade
C – Colaboração
C – Crítica (pensamento crítico)
Na realidade, essas habilidades sempre foram requeridas, e cultivadas pelas pessoas que mais se destacam social e profissionalmente. A diferença é que agora nos demos conta de que elas podem ser explicadas, praticadas e desenvolvidas no ambiente controlado de uma sala de aula, assim como outras disciplinas e destrezas. Sem dúvida, no mínimo, o mero fato de discuti-las em classe e fazer com que os alunos tenham consciência delas e possam identificá-las, já os ajudará muito a tê-las como metas pessoais para o auto-crescimento.
Embora As Aventuras de Pi se passe no século passado, e o desenvolvimento dessas destrezas se dê, para o personagem principal, na escola da vida, sendo antes de tudo uma questão de sobrevivência, o filme não deixou de ser um meio excitante e eficaz de explicar as habilidades do século 21 para minha audiência.
Comunicação
Precisamos desenvolver habilidades comunicativas sofisticadas no mundo atual. Pode-se pensar em algo mais sofisticado e complexo do que desenvolver um sistema de códigos e procedimentos para domesticar um tigre dentro de um pequeno barco no meio do oceano Pacífico? No caso específico dos alunos do século 21, em geral, o desafio é mais simples, resumindo-se à aprendizagem de novos códigos e linguagens, tanto naturais (inglês, espanhol, mandarim, árabe, etc.), assim como a linguagem tecnológica (familiarizar-se, por exemplo, com os softwares mais utilizados no mercado de trabalho, e, sobretudo, acostumar-se a lidar com o novo, indutivamente e autonomamente, explorando o funcionamento de um app, SaaS (software as a service, ou como se diz em português, software como serviço, online), ou um aparelho digital recentemente lançado.
Criatividade
Não faltam cenas no filme que ilustrem esse dom que deve ser cultivado em cada um de nós. Pensar fora dos padrões comuns, exercitar a lateralidade do pensamento, dar asas à imaginação numa situação de emergência, saber explorar diferentes maneiras de atingir objetivos quando não temos os recursos mais básicos e necessários de que dispúnhamos anteriormente. No filme, todas as ferramentas produzidas e adaptadas pelo garoto indiano para sobreviver durante mais de 200 dias dentro de um barco com uma fera selvagem nos remetem a essa poderosa faculdade que é a criatividade humana.
Colaboração
De uma certa maneira o processo de domesticação do tigre aproximou os dois náufragos, fazendo com que se criasse uma forte relação de respeito entre eles. Havia, se não um cooperação mútua, pelo menos o compromisso instintivo, por parte do tigre, de que deveria manter o companheiro vivo. No mundo duro do ambiente do trabalho, a habilidade de cooperar e criar um espírito de equipe é das mais difíceis de desenvolver, dado o egoísmo natural das pessoas. Aprimorar sua capacidade de trabalhar com o outro (online ou diretamente), respeitando o espaço e diferenças alheias, não tentar roubar para si o crédito do trabalho em comum, é um esforço hercúleo para todos. Inteligência emocional é o que mais se requer de funcionários, já que a desconfiança entre as pessoas com quem se trabalha e a falta de cooperação estão entre as principais causa da falta de produtividade nas empresas.
Pensamento crítico
Também não faltam exemplos no filme. Desde o momento em que Pi, ainda criança na sua cidade natal, se recusa a aceitar a impossibilidade de ser cristão, muçulmano e budista ao mesmo tempo (em cenas hilariantes), até o momento crucial do filme, quando o garoto conta aos representantes japoneses do navio que afundou duas versões da sua história, deixando claro que a mitologia esclarece e envolve emocionalmente mais que a narração crua e concreta de meros fatos. O que é fato, opinião ou uma combinação dos dois? Saber identificar e interpretar as diferentes versões do real: nada mais contemporâneo e necessário à vida profissional do mundo globalizado e diversificado.
Assistam a esse belo filme ou leiam esse livro incrível, mesmo que não necessitem programar uma palestra ou workshop baseados nele 🙂 .
Au revoir
Jorge Sette.